sexta-feira, 5 de junho de 2020

O capitalismo e o cuidado da casa comum


           
            A questão ecológica é uma das mais importantes questões que se tem discutido nos últimos tempos. A situação atual do mundo reclama reflexão e articulação, organização e engajamento, revisão de ideias e posturas. Constatar o problema, que se mostra complexo e desafiador, e pensar linhas de ação para solucioná-lo, ou ao menos amenizá-lo, é o objetivo do presente texto.
1. Algumas características do capitalismo
            Inicialmente, é preciso pensar o capitalismo com seus vícios e dilemas. Trata-se de um sistema que fez surgir um modelo de progresso que não inclui todas as pessoas, ferindo a dignidade destas e da natureza. A terra também possui uma dignidade a ser promovida e preservada. O homem, juntamente com a terra, forma uma coisa só. Quando falamos terra, não estamos nos referindo somente ao chão que está debaixo de nossos pés, mas ao conjunto grandioso, complexo e rico da biodiversidade presente no planeta terra.
            Para a justa compreensão da nocividade do sistema capitalista, é necessário analisar algumas de suas características, mas sem correr o risco de demonizá-lo, pois muito daquilo que se conquistou de bom, e que provocou certo desenvolvimento humano e material, foi conquista deste sistema. Em outras palavras, o capitalismo tem seu lado positivo. Mas como o foco da presente reflexão é apresentar, mesmo que brevemente, as causas dos problemas ambientais que conhecemos hoje, a atenção se voltará para suas características negativas. Afinal de contas, o que é positivo se apresenta como solução, e não como problema.
            Uma primeira característica é a visão que se tem da natureza. Desde o início da modernidade, o homem pensou que, unindo ciência e técnica, resolveria todos os seus problemas. Surgiu a chamada razão instrumental. Esta se sobrepôs à fé dos medievais e se apresentou como a salvação do gênero humano. Posteriormente, o positivismo consagrou o conhecimento oriundo da razão como uma espécie de caminho de salvação. A realidade desmente tal intento, pois a humanidade caminha para o colapso.
            A visão que daí decorre é a de que a natureza não passa de um objeto de conquista e dominação pelo homem. A consequência lógica e natural é o surgimento de uma visão reducionista da ecologia. Não se cria vínculo nem relação respeitosa com a terra, pois esta é vista como uma fonte inesgotável de riquezas a ser explorado sem cessar. Dotado de ambição desmedida, o homem explora sem medir as consequências de sua ação. Dominado pela cegueira que as ambições cultivam na mente humana, vai trilhando o caminho da própria morte. A morte da natureza é a morte do homem, pois este a integra, querendo ou não.
            Uma segunda característica negativa do sistema capitalista que domina o mundo é a concentração de renda nas mãos de poucos. O acúmulo de bens caracteriza o homem capitalista. Para isso, visa-se lucrar a todo custo. Para alcançar este lucro, é necessário, muitas vezes, transgredir as leis ambientais e trabalhistas. Cada país cria suas leis ambientais. No caso do Brasil, a legislação ambiental está entre as mais avançadas do mundo. Apesar disso, assiste-se a inúmeras violações das leis que foram criadas para promover e proteger o meio ambiente.
            A violação das leis ambientais hoje, no Brasil, se dá pelo fato de o governo federal ser conivente com a situação. Infelizmente, com o afrouxamento da fiscalização, principalmente por parte do Ibama, que é um dos órgãos de fiscalização federal, o desflorestamento da Amazônia é um dos crimes que tem chamado a atenção do mundo inteiro. Fazendeiros, grileiros e garimpeiros são os criminosos principais. Quando os ricos resolvem cometer crimes, o sistema de fiscalização e punição (órgãos de fiscalização e Poder Judiciário) os tratam com certa leveza, colaborando, desse modo, para o crescimento da cultura da impunidade que sempre fez parte da história do Brasil.
            A exploração das riquezas naturais por parte de poucos, gera a concentração destas riquezas também nas mãos destes poucos. A distribuição da água, a produção da energia, o cultivo dos alimentos (grãos, carne e frango, principalmente), o gás de cozinha e demais produtos necessários à sobrevivência humana, a produção e venda destes produtos geram riquezas que se concentram nas mãos de um número reduzido de grandes empresários. Estes formam a elite econômica, que procura dominar não somente a economia, mas também o sistema político e cultural. Esta é a causa principal das desigualdades sociais presentes nos países em desenvolvimento. As instituições estatais são muito frágeis e tendenciosas no trato com os poderosos, principalmente em matéria ambiental. Isto é facilmente perceptível, principalmente no Brasil.
            A ideia de progresso que se tem no mundo capitalista é outra característica marcante desse sistema. Desenvolvimento é a palavra de ordem; mas a realidade tem mostrado que é uma espécie de desenvolvimento insustentável. A natureza tem demonstrado que seus recursos se esgotam, e que uma vez agredida, responde com força total. As secas em muitos lugares, o excesso de chuvas em outros, os tsunamis e todos os desastres ambientais são uma resposta da natureza à ação humana. O planeta terra é um superorganismo vivo, que uma vez agredido, é capaz de responder. O homem é incapaz de suportar a resposta da natureza à exploração que dela se faz. Milhares de pessoas morrem em todo o mundo devido aos desastres ambientais, entre outros males oriundos da exploração da natureza.
            A elite econômica que concebeu a ideia capitalista de progresso, que não contempla a preservação da natureza, não está preocupada com as consequências inevitáveis da destruição ambiental em nome do progresso. A mineração, o desflorestamento, a poluição das águas, o uso excessivo de agrotóxicos, o garimpo, a produção de hormônios e conservantes, a queima de combustíveis fósseis geradora de dióxido de carbono, a poluição industrial e tantas outras formas de agressão à natureza são reflexos de um modelo de desenvolvimento que transmite uma falsa ideia de progresso. Para salvar o planeta do caos, o progresso precisa se pautar em um modelo de desenvolvimento integral, que considere a dignidade da pessoa humana e a preservação da natureza.
            Muitas outras características poderiam ser elencadas, pois o sistema capitalista é amplo e complexo, não deixando escapar nenhuma das dimensões da vida humana, mas para o objetivo a que se propôs esta reflexão, as características mencionadas são suficientes para a compreensão daquilo que podemos considerar o núcleo fundamental do sistema. Com o passar do tempo, o sistema capitalista foi se aperfeiçoando de tal modo que praticamente nenhum ser humano escapa do seu alcance e atuação prejudicial.
2. A ecologia integral
            A ecologia integral é, certamente, um caminho viável de superação da crise ecológica que eclodiu no mundo inteiro. Trata-se da ecologia que contempla a presença da natureza e a promoção da dignidade da pessoa humana. A terra e os pobres são escutados e promovidos. A ecologia integral está alicerçada na “cosmologia de transformação”, expressão pensada pelo filósofo e teólogo Leonardo Boff, em sua obra “As Quatro Ecologias: ambiental, política e social, mental e integral”, publicada pela editora Mar de Ideias Navegação Cultural, em 2012. Esta “cosmovisão de transformação” se opõe à “cosmologia de dominação”, fundada no antropocentrismo, que coloca o homem no centro, considerando-o senhor e dominador da criação.
            A solução para o problema da crise ecológica está na conciliação entre humanidade e meio ambiente. É necessário enxergar a natureza como titular de direitos. Isto significa que se deve cultivar uma cultura de respeito e cuidado, bem como fazer surgir uma nova consciência planetária. Esta nova consciência fará com que as pessoas mudem suas atitudes para experimentarem novas vivências na relação com a natureza. Deve-se passar da mentalidade de exploração para a mentalidade do saber conviver com as pessoas e com a natureza. O homem precisa criar uma nova relação com a natureza, abandonando posturas predatórias e adotando atitudes amorosas com a terra, casa comum.
            Em maio de 2015, o Papa Francisco publicou a encíclica Laudato Si’ sobre o cuidado da casa comum. Já no início da encíclica, o Papa afirma que a terra é irmã do ser humano, expressando, assim, a proximidade e a ternura que se deve ter para com ela. “Esta irmã clama contra o mal que lhe provocamos por causa do uso irresponsável e do abuso dos bens que Deus nela colocou”, afirma o Papa; e após afirmar que a terra está, assim como os pobres, sendo maltratada, oprimida e devastada, completa: “Esquecemo-nos de que nós mesmos somos terra (cf. Gn 2,7). O nosso corpo é constituído pelos elementos do planeta; o seu ar permite-nos respirar, e a sua água vivifica-nos e restaura-nos” (cf. Laudato Si’, n. 2).
            Esta encíclica do Papa Francisco foi muito bem recebida, tanto pelos católicos quanto pelas pessoas não católicas, preocupadas com a situação ecológica do mundo. A comunidade científica também elogiou a encíclica porque esta verbalizou uma preocupação que a ciência vem manifestando nos últimos anos: O homem precisa mudar a sua relação com a natureza; precisa rever o modelo de desenvolvimento econômico adotado para a geração de riqueza.
            Na encíclica, o Papa lança um forte e audacioso convite: renovar o diálogo sobre a maneira como estamos construindo o futuro do planeta terra. O Papa chama a atenção para a necessidade de uma nova “solidariedade universal”, única capaz de salvar o planeta do caos. Esta solidariedade passa, necessariamente, pela convicção de que tudo está estreitamente interligado no mundo. É urgente que se procure “outras maneiras de entender a economia e o progresso, o valor próprio de cada criatura, o sentido humano da ecologia, a necessidade de debates sinceros e honestos, a grave responsabilidade da política internacional e local, a cultura do descarte e a proposta dum novo estilo de vida” (Laudato Si’, n. 16).
            Estes breves apontamentos são suficientes para nos alertar a respeito da necessária mudança de paradigma. Entende-se por paradigma a nossa maneira de nos relacionarmos com nós mesmos e com tudo o que nos cerca; é uma espécie de modelo de apreciação e explicação da realidade. No mundo moderno, o paradigma ocidental é marcado por uma concepção reducionista do homem e pelo desrespeito às pessoas e à natureza. A lógica linear que rege a pesquisa científica molda o nosso modo de enxergar a vida, fazendo-nos aderir a concepções simplistas. Este paradigma legitima relações predatórias e competitivas e, portanto, destruidoras dos seres frágeis e indefesos, incluindo o próprio homem.
            A crise ecológica exige a passagem deste paradigma moderno legitimador de relações doentias para o paradigma ecológico. Este, por sua vez, é marcado por uma nova visão da terra e do homem, uma nova forma de diálogo e relação com a natureza, e por uma nova sensibilidade com o planeta terra. O paradigma ecológico também inaugura a ética da re-ligação, que se traduz na humanização do ser humano, na compreensão da complexidade da vida de todos os seres vivos, na autoconsciência e liberdade, e na obediência à lógica da natureza, mãe que sustenta e governa a todos. Esta é a ética do bem-viver, que se opõe à ética da conveniência legitimadora da exploração do homem e da natureza.

Tiago de França

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