terça-feira, 12 de maio de 2020

O risco da negação da realidade


          A negação do real é uma estratégia política que visa beneficiar pessoas e grupos. Muitas vezes, nega-se o real para passar a ideia de que nada de tão grave está acontecendo. Utiliza-se o reducionismo da realidade. Insiste-se nesse tipo de discurso, porque a repetição da negação pode fazer surgir a não negação, ou seja, a situação é péssima, mas a negação do péssimo pode levar as pessoas a aceitar o péssimo como algo bom, natural e até necessário.
            Quando o que é ruim é aceito como natural, então temos a banalização do mal, diria a filósofa Hannah Arendt. Por que é necessário normalizar o mal? Porque não há o que é bom para oferecer. Há homens maus que não conhecem o bem. Passam a vida praticando o mal, propositadamente. Beneficiam-se fazendo o mal aos outros. Estes são sempre os outros, os estranhos que estão fora de suas relações afetivas. Assim, podem sofrer. A morte dos estranhos não faz diferença para os homens maus. Trata-se de uma morte necessária.
            Mas o que fazer para camuflar o trágico da negação do real? Hoje, apela-se para as redes sociais. Estas constituem uma excelente ferramenta. Surgem milhares de perfis falsos e os tais robôs para curtir as expressões repetidas que reforçam as ideologias. A ideia é passar para os outros que as ideologias de morte não são ruins. Nos regimes totalitários do século XX se fazia assim, sem o auxílio das redes sociais. Passa-se a ideia de que certas categorias de pessoas precisam sofrer, precisam ser torturadas e mortas.
            Há uma massa de robôs humanos, obviamente, não feitos nos laboratórios de informática. As vivências artificiais que envolvem milhões de pessoas transformam-nas em robôs humanos. Basta que alguém saiba manusear o controle, que estes robôs entram em ação. São aquelas pessoas que não usam o aparelho cerebral para pensar o real. Elas até possuem cérebro, mas se recusam a pensar. Usam-no somente para as funções básicas da sobrevivência. São inconsequentes. Algumas se tornam paranoicas, outras enlouquecem. Trata-se de uma massa numerosa.
            O robô humano não tem o senso do ridículo. São capazes de muitas coisas sem o menor pudor. Não conseguem enxergar a anormalidade das atrocidades que falam e fazem. Mas alguém pode dizer que o conceito de normalidade é questionável. Sim, de fato. Mas é fato também que não é nada normal normalizar o que fere e mata as pessoas. Fora da legítima defesa, matar alguém é crime. Mudar isso é cair na barbárie, e esta foge da normalidade. O respeito e a promoção da vida humana são o parâmetro para medir a normalidade. Racionalmente, isto é plausível.
            Os que lideraram o totalitarismo no século passado sabiam da importância, da força e do alcance da propaganda. O markentig também vende ideologias de morte. Sua força é tão intensa que tira a capacidade de pensar de muita gente. Todas as pessoas têm o direito de pensar. Renunciar a este direito é praticar suicídio: A pessoa passa a viver nas mãos de outras, sendo jogada de um lado para o outro. Perde a visão do real, e vive como um objeto que pode ser usado ao bel prazer de quem quer que seja.
            Por que o mercado financeiro domina o mundo? Porque é capaz de transformar as pessoas em objeto. Há um controle da vontade. O mercado, que não tem o direito de fazer isso, procura controlar todas as áreas da vida humana: Diz o que as pessoas devem comer, como se vestir, o que e como devem pensar e falar, para onde viajar, o que fazer da vida, enfim, procura moldar o ser das pessoas. Tal determinação é tão violenta, que a grande maioria não sente que é diuturnamente manipulada e controlada. O mercado trabalha com o convencimento, levando a pessoa a crer que a escravidão é algo bom e necessário à vida. A pessoa não percebe, mas vive dizendo para si mesmas: “Sou um escravo feliz!”
            A dimensão espiritual também é afetada. No caso do cristianismo, o Deus e Pai de Jesus, e até o próprio Jesus, passam por uma transformação: São transformados em ídolos. O ensinamento fundamental de Jesus, que é o amor a Deus e ao próximo, como descrito na parábola do samaritano, é rechaçado. A ideologia ensina que amar o próximo não leva a nada. O que se ganha com o amor ao próximo? O mercado financeiro trabalha com o parâmetro do ganho e do prejuízo. O amor ao próximo não gera ganho financeiro. É uma perda de tempo.
            A imagem do deus do mercado religioso é o oposto do Deus revelado em Jesus de Nazaré. Trata-se de um deus mercadológico, que trabalha com o parâmetro do mercado. Este deus tem seus representantes na terra. A relação com esta divindade se dá na base do negócio. Por um lado, a relação promete prosperidade; por outro, exige subserviência. Este tipo de divindade serve para estas duas coisas: Gerar a sensação de prosperidade material, mas em troca se exige a entrega total daquilo que se é e do que se tem, em prol da religião.
            Como o sentimento religioso é algo muito íntimo e forte nas pessoas, facilmente elas se submetem às promessas deste tipo de divindade. No mercado religioso, a religiosidade é um fenômeno sentimental, pouco ou nada racional. A racionalidade aparece como um mal a ser combatido. As pessoas não enxergam problema algum no mercado religioso, onde a divindade também é vendida como produto de alto nível. Não há gratuidade, verdade, liberdade nem difusão do amor ao próximo. Pelo contrário, tudo custa caro, há muita mentira e controle, difunde-se e pratica-se o egoísmo substitutivo do amor ao próximo.
            Esta é a realidade vivida, porém camuflada. Quando Jesus disse nos evangelhos que seus seguidores deveriam orar e vigiar, hoje compreendemos que também ele fala do perigo de se construir e adorar a um falso deus. O cristão que não vigia, facilmente deixa de ser cristão e se transforma em alguém que se dedica à idolatria. Por isso, é importante ler e compreender as Sagradas Escrituras. Por que será que não existe interesse em levar as pessoas à leitura e meditação das Escrituras Sagradas? Fala-se no assunto, mas não há insistência na questão.
            Fora da religião, o interesse se encontra em manter as pessoas dispersas e anuladas. A dispersão interessa aos manipuladores. Pessoas reunidas e centradas terminam pensando a vida. Isso é sinônimo de prejuízo para quem manipula. Numa roda de conversa, sem se ocupar com futilidades, as pessoas passam a enxergar a vida. Por isso se investe tanto no lúdico. É verdade que a lúdico faz parte da vida. O lazer é necessário. Mas é verdade também que a vida não é um eterno lazer. O lúdico pode ser uma importante ferramenta anestésica.
            Quem não morre enganado, pode despertar para a realidade. Quando isso ocorre, todo cuidado é pouco. A desilusão é uma experiência terrível. Pode significar a perda da esperança. Muita gente desiludida anda doente, sem forças para continuar sobrevivendo. Sentem-se mutiladas. Não se encontram na religião mercadológica. O desespero é o companheiro inarredável. O vazio existencial preenche o cotidiano, a pessoa se sente sufocada. Muitas desejam a morte, outras conseguem realizar esse desejo. O suicídio cresce, numericamente, e as pessoas tendem a enxergá-lo como normal e necessário. “É o destino da pessoa, fazer o quê?”, dizem os que não pensam.
            E assim a humanidade vai sobrevivendo. O que virá após esse tempo sombrio da pós-modernidade barulhenta e líquida? Não parece que algo sólido esteja sendo construído para servir de alicerce para as gerações futuras. Estas certamente dirão que a atual geração é bastante irresponsável. Para não caírem no anacronismo, terão que analisar as causas de tamanha cegueira e insolência. Será que a pandemia do coronavírus despertará a consciência adormecida de milhões de pessoas ao redor do mundo? O estado de muitas consciências é tão deplorável que nem o coronavírus dará conta de tal intento.

Tiago de França

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